05 | Qual o dia que mudou sua vida?
Sabe quando você começa a olhar pra trás e pensa “como vim parar aqui?”. Sim, exatamente. Aqui. No instante presente. Qual foi a sucessão de escolhas que te trouxeram até aqui? O que me fez optar pelo caminho A, em vez do B (ou C,D,E..).
Essa pira não bate sempre, pelo contrário, quase nunca. Se parar pra pensar, a vida todinha é feita de escolhas diante de múltiplos caminhos. Só que, dia desses, fiquei dando voltas e voltas pra entender qual foi a minha sucessão de acontecimentos-escolhas que me fez parar em Hervás.
Fui teletransportada para o dia 25/10/2020. Quase 4 anos atrás, em plena pandemia de COVID-19. Havia acabado de me mudar com o Luccas para a nossa casinha na Glória. Aquela que abrigou uma cambada de amigos. Montamos ela todinha, majoritariamente com coisas que fomos ganhando, coisas que o pessoal não queria mais. Ela foi tomando forma e afeto. Tentando respirar o ar para além da nossa janela da sala, escapulíamos no fim da tarde para pedalar por 30 minutos no aterro do flamengo.
Foi em uma dessas pausas-respiro que o ar faltou. E, hoje, sempre que conto essa história, faço um ar de piada meio macabra, enquanto sai um riso meio forçado para dizer que “sobrevivemos”. É aquela velha história: traumas que são elaborados depois. Para resumir bastante o drama: fomos assaltados por 3 caras, que achavam que eu estava sozinha na bike, me pararam com um facão no pescoço e o Luccas, que veio vindo atrás, jogou a bike no cara do facão e acabou tomando uma facada no braço. Como diz o ditado, dos males, o menor: alguns pontos no braço dele, uma vacina anti-tétano e um chaveiro 24h para abrir a porta de casa. O saldo: um susto trauma.
Continuei vivendo a vida normal. Normal mesmo, porque sempre acreditei que cariocas fazem de assaltos uma armadura com piadas meio amargas para sobreviverem na desigualdade da cidade maravilhosa, causadora direta da violência urbana.
Acontece que uma pergunta veio me perseguindo, meio inquieta: se eu tivesse morrido naquele momento, o que ainda não teria conseguido fazer? Isso pode parecer meio dramático, ou uma dose de exagero para quem me lê. A verdade é que, tendo vivido aquele evento, eu senti como se minha vida ou integridade física pudessem ter escorrido pelas mãos. E uma quase-morte originou essa pergunta cheia de vida.
Adianta essa fita - ou diria, adianta esse filme. Fevereiro de 2021. Travessia cruzando a pé de Cumuruxatiba até Porto Seguro, acampando no litoral. Vida desacelerada. Foi a primeira vez que a ideia de viver no interior cruzou minha cabeça - e do Luccas também. Algo na calma e inteireza do momento presente trazia um quê de borboletas na boca do estômago. Acho que estava me apaixonando por uma ideia.
E voltamos pra vida normal. Casinha na Glória, dissertação, acordando com uma vista linda até que minha vida vira do avesso. Minha avó precisou ser internada no hospital. Eu estava com férias marcadas duas semanas depois daquilo. O quadro dela estava estável e, numa decisão difícil sobre ir ou ficar, abrir ou não abrir mão, ser ou não egoísta, resolvi embarcar no ônibus para o Vale do Matutu, afinal, como eu disse para um amigo: “a Ita me ensinou a viver, sempre”. Não foram as férias mais tranquilas do mundo. Uma avalanche interna - e externa também, porque Luccas estava virando do avesso muitas coisas nas quais ele acreditava. Aquela sementinha plantada lá atrás, reapareceu. “E se nosso lugar for nas montanhas?”. Pois bem.
E voltamos, mais uma vez. Minha avó partiu pouco depois. Me virou do avesso. Me vi atravessada no tão famoso luto. O tempo fica desconexo com a realidade, ao mesmo tempo tendo que lidar com burocracias mil. Tive que voltar pra Espanha, depois de mais de 16 anos sem pisar aqui para não ter que reencontrar meu abusador. E vim. Com meu pai, com Luccas. E, principalmente, com muita coragem. Tive que enfrentar muita coisa - que é história pra um outro post. Só que foi justo essa viagem, na qual eu nem queria vir inicialmente, que fez aquela semente germinar. Germinou com força. De uma morte, nasceu vida. Me reconectei às minhas origens e a uma infinidade de memórias memórias. Relembrei parte de quem eu era - guardada num baú bem escondidinho.
Ainda assim, voltamos. Dessa vez, diferentes. Eu e Luccas, cada um com seus motivos, ficamos mexidos. Quase do avesso. No fim daquele ano, precisamos empacotar todas as nossas coisas para entregar nosso apêzin na Glória. Decidimos que viríamos pra Espanha em 2023 dar seguimento a algumas coisas dessa antiga casa dos meus avós paternos. Test-drive?! Junto com isso, fomos pra Teresópolis, ou Terê pros íntimos. Passamos um ano entre idas e vindas do Rio pra serra, da serra pro Rio, morando com meus sogros, além da temporadona que passamos por aqui no verão europeu - hmm chique, rs.
Voltamos, mas prontos pra ir de novo. Chegamos no Rio no final da sua época mais bonita: o inverno. Já tínhamos as passagens pra voltar em 2024. E foi assim que vim parar aqui. Numa sucessão doida de eventos, numa chacoalhada interna. Procurava um interior e montanhas. Voilá! Um pueblo de 4.000 habitantes que a padeira sabe meu nome, que as vizinhas nos cuidam, que eu divido a vida com esse grande amor chamado Luccas, que eu voltei a me cuidar e correr e um tanto de coisas mais.
Sigo trabalhando online, feliz com meu trabalho, inquieta com o mundo e suas desigualdades. Enquanto isso, aprendi a me acolher mais, a cuidar mais de mim, a viver mais de presente, a sentir um calor no aconchego. A sentir. Afinal, ter aconchego é gostoso demais. E, para minha surpresa, isso não me impede de continuar sentindo muito (insira aqui todos os sentimentos possíveis). Isso também não impede o movimento - a qualquer momento que for. Mas isso já é papo pra outra hora. Por agora, sigo apreciando essa sucessão de eventos aleatórios sem nenhuma relação de causalidade de quase-morte, morte e renascimento que me fizeram vir parar aqui com tanta fé na vida.
Quanta paz!
Bem vindes, 31 voltas ao sol!
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Recomendações não solicitadas
O albúm mais lindo do momento, pano de fundo pra esse escrito, da Liniker - Caju.
Podcast ouvido na semana:
Nutri Desconstruída - todos os episódios! É simplesmente maravilhoso, uma pessoa que olha para a alimentação se imbricando em temas de raça, gênero e classe, conectando a uma alimentação de verdade, afetiva, e um tanto de coisas mais. Dá vontade de preparar aquele almoção só de ouvir ela falando!